Os Carneiros e a Estrela (Parte V) por Kate Agnelli.
Isaura
A vizinhança dos Agnelli com os Pereiras fez com que Violindo, que como o próprio nome denunciava, era bonito, forte, ruivo acabasse conhecendo Isaura. Os grandes amores são os mais difíceis, os mais contraditórios para aqueles que estão fora do círculo no qual eles se fecham...Isaura era delicada, pequena com olhos amendoados, cabelos castanhos claros, finos e teimosa como a maioria da família. Sua paixão não teve a aprovação dos pais, que viam os Italianos como bárbaros invasores, de costumes tão diferentes dos seus, que há muitas gerações só se casavam entre os parentes. Ou seria uma desconfiança subconsciente, milenar, resquícios do antigo Império Romano, que teria gravado profundamente suas marcas no povo do deserto...Contam que os primeiros "Abendanas" (Pereira), eram guerreiros de Israel, capturados e trazidos cativos pelo romano Flavius Josephus, até a Península Ibérica. Na mesma época outros Israelitas, por volta de mil deles, resistiram bravamente na fortaleza montanhosa de Massada, vendo eles que não iriam agüentar o poderoso contingente do exército Romano, suicidaram-se, para não cair na mão do inimigo.
Mas o amor desconhece a história humana e as fronteiras físicas, acontece...
Por outro lado os italianos não viam com bons olhos o casamento com uma "brasiliana". Estava novamente declarada a guerra. Casaram-se assim mesmo. Foram morar no que restou da fazenda Pedra Branca, reconquistada, fantasmagórica, com todo aquele maquinário de beneficiar café parado. Violindo acreditava na força de sua juventude e no amor. Mantinha as máquinas, para não estragarem, ia plantando outras culturas. O casal era feliz ao seu modo. Cada um ensinava ao outro um pouco de sua cultura, seus costumes. E veio a primeira filha. Uma linda menina forte e saudável de nome Sílvia. Depois de três meses, estavam esperando o segundo filho, sentiam-se abençoados, antigamente ter filhos logo no começo do casamento era sinal da aprovação de D'us. Estavam no meio da Revolução que pipocava pelo Estado de São Paulo. O presidente Washington Luiz havia sido deposto os estados mais fortes eram São Paulo e Minas Gerais, a popular República café com leite. Em São Paulo o partido mais importante era o P.R.P., que apoiava o governo, no entanto muitos cafeicultores estavam descontentes com o governo e não se opuseram a Revolução, que pôs na sede do governo federal o gaúcho Getúlio Vargas.. Ele deveria governar provisoriamente até que fossem realizadas novas eleições. Os estados eram governados por interventores impostos pelo governo, mas as forças que se uniram para a Revolução logo começaram a se desentender. Tudo foi ficando confuso, não só para o Brasil. A insatisfação humana existe por toda parte. A Europa não guerreava, mas não tinha paz. Os mexericos corriam nas bocas das pessoas era como se todo mundo estivesse à beira de um ataque de nervos. Como diz o ditado Ladino "a língua não tem osso, mas quebra ossos". O fato de Isaura ser brasileira já era um bom motivo para arrumar encrenca no meio da colônia Italiana.
Certo dia Violindo estava limpando as máquinas, quando viu as mulheres da família Agnelli surgirem na entrada da fazenda, logo imaginou, querem encrenca! Correu até a frente delas e foi dizendo se alguma delas falasse ou encostasse a mão em Isaura , iria apanhar tanto dele, que nunca mais esqueceria...Ele amava aquela "brasiliana" verdadeiramente. Ninguém nunca soube o que realmente tinha acontecido, porque as mulheres estavam com jeito de briga naquele dia. Violindo como a maioria dos Italianos da época era torcedor fanático do Palmeiras. Num Domingo ouvindo pelo rádio que seu time ganhara, não podia se conter de tanta alegria. Pegou o "fordinho", rumou para Dourado para comemorar com os amigos. A asa negra da infelicidade começou a encobrir sua vida naquele dia. Um trabalhador rural bêbado, saiu de trás de uns arbustos com um garrafão de pinga na mão atirou-se em frente ao seu carro, morreu na hora. Aterrorizado Violindo desceu do carro, colocou-o no banco de trás e correu o mais rápido possível para Dourado, levando ao Dr. Almeida, mas o infeliz já estava morto. A mente de Violindo parecia uma montanha russa, primeiro a alegria por causa do futebol, depois a desgraça, uma profunda tristeza entrou no seu bom coração...Tinha trinta anos.
Alguns meses após o infeliz acontecimento e depois de absolvido pelas leis, Violindo começou a sentir fortes dores abdominais. Os médicos da cidade Dr. Borja Cardoso e Dr. Almeida tentaram tudo que podiam para ajudá-lo, mas em vão. Deram seu parecer, era apendicite. Dourado não possuía hospital. Era o mês de junho, o vento frio cortava a cidade e a pele fina das pessoas. Os Agnelli, pegaram o fordinho e levaram Violindo para a cidade de Jau. Os solavancos da estrada de terra pareciam intermináveis. Violindo não suportou. Morreu na entrada da cidade, antes de chegar ao hospital.
Dizem que nos seus delírios febris ele dizia que viria buscar a filha, não a deixaria no mundo para sofrer. Dito e feito. Após morte a menina adoeceu de gastroenterite, morrendo em setembro, passados exatos três meses. Isaura pensou que D'us devia estar certo porque sua sogra dizia que queria a menina.
De fato tiraram-lhe todos os bens materiais. Isaura diante de tanta dor, perdeu o filho que esperava. Não suportou enlouqueceu. Não comia. Não bebia. Ficava parada, ausente com o cachorrinho lulu nos braços. Último presente de Violindo. Seus irmãos levaram-na para a fazenda Boa Vista. Ensandecida pela dor, tinha medo de tudo, até de uma simples galinha.
Às vezes vagava pelos pastos por horas, sem destino, falando línguas que ninguém compreendia. Foi ficando por ali rodeada de amor e compreensão dos pais e irmãos. Nada restara de seu. Até o luluzinho a sogra mandou buscar. O sofrimento age de diferentes formas em diferentes pessoas.
O tempo vai assentando as águas revoltas das emoções. Isaura desenvolveu uma rara paranormalidade, previa o futuro com precisão assustadora. Também via o passado das pessoas, somente olhando para elas. Falava com os mortos como falamos com nossos familiares. Quanto seus irmãos queriam saber o resultado do turfe do Rio de Janeiro, perguntavam a ela. Espantosamente ela dava todos os resultados. Tudo era confirmado no dia seguinte pelos jornais que chegavam à fazenda. Era de espantar até o mais incrédulo. E assim Isaura foi vivendo num corpo vazio de desejos, enquanto sua alma vagava pelos espaços infinitos, que ainda não nos é permitido conhecer... O sofrimento tirou de sua mente o fino véu que separa o mundo material do espiritual. Uma família amiga de Jau ofereceu hospedagem para ela, para quem sabe mudando de ambiente pudesse melhorar. Todos achavam que jamais recobraria a razão. Depois de muitas idas e vindas tratamentos espirituais, ela foi se equilibrando.
Acabou arrumando um trabalho em Campinas. Mas continuava sem sentir, dizia que estava de passagem por este mundo. Às vezes desligava-se do presente, deixando a pessoa com quem estava conversando falando sozinha. Refugiou-se no espiritismo. Fundou o centro espírita de Dourado "Em Torno do Mestre". Deu parte de sua herança para uma creche de crianças excepcionais de Rio Claro, que atualmente recebe ajuda da rainha Silvia da Suécia, possuidora de raízes brasileiras. Isaura não tinha âncora no mundo. Ajudava aos pobres e necessitados que encontrou pela vida. Fez muita caridade tanto material como espiritual.
Seus ideais não foram compreendidos por grande parte da sua família. Aqueles que a condenavam, muitas vezes precisaram de sua ajuda, mesmo que continuassem indo todos os domingos na missa. "Façam que eu digo, mas não que faço", a hipocrisia humana de sempre, que de tanto ser praticada acaba parecendo normal...
Assim Isaura era amada e odiada como a maioria de nós seres humanos. O mais interessante foi que ela previu a própria morte. Exigiu que a banda da escola na qual trabalhava tocasse no seu funeral. Foi inclusive na fábrica de moveis de um parente tirar as medidas do próprio caixão, enquanto todos ficavam estarrecidos, ela parecia finalmente ter encontrado a paz
Morreu no dia previsto, sentada na sua cama, seria o dia do aniversário da sua filha...Enquanto seu cortejo fúnebre passava, o comércio da cidade baixava as portas...
No período que Isaura esteve atormentada, apareceu na Boa Vista um negro africano, segundo diziam, feiticeiro. O velho Firmino ( pai de Isaura), com pena deixou-o morar nas suas terras. O negro fez um rancho bem longe da casa sede e por ali ficou. Curava pessoas com ervas nativas, que conhecia muito bem. Sua fama aumentou muito. Apareciam doentes de toda parte. Até que a ganância e a vaidade tomaram conta de seu coração. Passou a cobrar por seus chás e benzimentos. Nessa época a lepra era uma doença incurável. Certo homem muito rico viu-se acometido pelo terrível mal. Procurou o tal curandeiro. Cada vez que fazia seus benzimentos no tal homem, mais dinheiro ele pegava. Até que o homem rico resolveu ficar por ali na cabana com o negro para curar-se mais rápido. Acabou morrendo.
Sem saber o que fazer com o cadáver, enterrou-o ali perto do casebre, mas nas terras que pertenciam a Antonio Agnelli. É claro que uma assim jamais fica escondida. As pessoas falavam...
Antonio Agnelli ao saber do fato foi direto na delegacia e denunciou o negro. A polícia foi até o local descobriu o feito. Desenterraram o cadáver. Prenderam o negro e deram-lhe uma surra.
O feiticeiro nunca perdoou o acontecido e amaldiçoava os Agnelli de todas as formas. A filha mais velha de Antonio Agnelli estava noiva de um rapaz , filho de Italianos da cidade de Ribeirão Bonito, quando conheceu Osório Pereira, que por sua vez iria casar-se, como de costume da família com uma prima. De repente Osório começou a se interessar por Júlia e vice-versa. Ela desmanchou o noivado e encontrava-se às escondidas com ele. Antonio Agnelli ao saber do fato disse que mataria Osório, que passou a andar armado constantemente. Isaura como sempre tinha suas visões e pressentimentos. Logo desconfiou que algo estava errado.
Em suas visões aparecia o feiticeiro preso. Ela não teve dúvidas, foi visitá-lo na cadeia e perguntou se ele sabia de alguma coisa envolvendo seu irmão Osório. O negro disse que se os Agnelli não gostavam dos Pereiras, dali pra frente iriam ter que aturá-los pelo resto da vida. Disse ter feito um encantamento que ninguém jamais poderia quebrar. Na verdade as coisas começaram realmente a piorar, tanto no namoro como nas famílias. O pai de Osório ficou doente com câncer na garganta, mas para espanto dos médicos não sentia dor alguma. Só foi enfraquecendo. Todos diziam que ele não sentia dor devido `a bondade de seu coração.
Certo dia enquanto ainda podia andar, estava ele carregando um jacá de milho para colocar no moinho, quando apareceu um moço muito bem vestido, dizendo-se curador. Disse para Firmino Pereira que ele estava doente porque haviam enterrado um Santo Antonio de ponta cabeça no mourão de sua porteira. Firmino abaixou o jacá. Colocou-o no chão, olhou firme par o rapaz e foi dizendo. "Olha moço se o santo é santo mesmo, tanto faz ele estar de pé ou de ponta cabeça, deitado, a bondade não muda". Dizendo isso levantou o jacá do chão colocou-o no ombro e foi embora em direção ao moinho da fazenda. O tal curador desiludido, não teve outra saída, puxou a rédea do cavalo e se foi... No dia da grande viagem, Firmino disse para sua filha mais velha Maria "hoje quando o relógio bater dez horas estou seguindo viagem". Sem entender, Maria achou que o pai estava caducando. Só percebeu a mensagem no dia seguinte, quando estavam velando o corpo. Ela lembrou-se que quando o relógio estava realmente batendo dez horas da noite, sua mãe aflita chamou os filhos para informar que o pai deles acabara de falecer. Maria nunca mais pode ouvir o som do carrilhão...
Alguns dias antes de sua morte Firmino chamou Osorio e Júlia e pediu que eles se casassem. Firmino Pereira foi realmente bom. Certa vez vendeu duzentos e cinqüenta alqueires de terras para ajudar seu irmão Juca que estava em apuros. Depois disso Juca, mudou-se com a família para Andradina. Era o ano de 1938.Ninguém soube dizer se foi praga do negro ou se o amor proibido é melhor, o fato é que os dois se casaram em 1939. Estourava a guerra na Europa e entre famílias... No dia que Júlia enfim foi convidada para conhecer a família toda de Osório, estranhou um pouco a austeridade que encontrou. As mulheres na sua maioria vestiam-se de roupas escuras, ou com estampas miúdas. Usavam cabelos presos por tranças ou em severos coques, numa época que a moda era de cabelos curtos com permanentes. Achou estranho também o modo de comunicação, quase não se falavam. Trocavam estranhos olhares.
Os Pereiras pareciam ter um código especial de comunicação entre eles. Numa família de poucas misturas étnicas a palavra acaba tornando-se inútil. Júlia estava acostumada com pessoas que demostravam de modo os seus sentimentos. Vestiam com cores alegres, tecidos finos e falavam muito.
Quando retornou da visita à futura família, suas amigas da cidade lhe perguntaram se os Pereiras não pediram para ela "mostrar os dentes"...Todos conheciam as desavenças. Os preconceitos e desencontros. Eram duas raças diferentes, mas igualmente arrogantes, cada uma a seu modo. Para algumas pessoas é muito difícil aceitar aquilo que não espelha elas próprias... Voltando ao tricô que tece a malha do destino Osório e Júlia estavam casados e já com dois filhos pequenos quando resolveram mudar-se para Andradina à convite do "tio Juca". Mesmo porque Osório havia sido convocado para a guerra.
Dizem que ele se apresentou e sem descer do cavalo perguntou porque o tinham chamado. Quando revelaram a causa, ele ainda sem descer do cavalo disse para o funcionário "Eles arrumaram a briga, que apartem! Por que temos nós que ir até lá?! "Dizendo isso virou as rédeas do cavalo e foi embora, deixando o pobre homem ciente que estava cumprindo um dever patriótico, sem palavras...
E assim o jovem casal tomou o trem da Noroeste de Bauru e rumou para os confins do mundo, como diziam. Quase na divisa com Mato Grosso a natureza ainda estava para ser domada. O mato era grosso mesmo. Não havia estradas, só picadas. Ao se descer do trem e andar alguns metros já se deparava com a floresta desafiadora. Bandos de araras vermelhas sobrevoavam os ranchos. O calor era insuportável, abafava até as idéias. Água perto de casa só de poço. Pernilongos de todo tipo, chuvas torrenciais. Malária todos tiveram, até as crianças. Muita lama, sol abrasador. Medo dos Índios. Afinal estavam invadindo a terra que era deles por séculos. A criação de gado e porcos era abundante. Vermelhidão no solo, na pele, no céu e nas mentes das pessoas enraivecidas pela pequenez do ser humano perante a força da natureza...
A terra sempre foi muito mais forte do que todos nós...Não se sabe se o calor insuportável, a falta de conforto e de cuidados médicos fizeram com que Júlia perdesse o terceiro filho, uma robusta menina. Derem-lhe o nome de Vilma. Ficou lá em Andradina. Não suportando mais os sofrimentos que vinha passando Júlia escreveu para sua mãe. Tereza, mulher decidida e forte, tomou o trem da Noroeste em Bauru e foi buscar a filha. Quando chegou lá viu que a situação deles era pior do que imaginava.
Para enfrentar a vida naquele lugar, era necessário muito mais do que a vontade. Precisava ser do tipo físico apropriado. Mulheres delicadas, jamais suportariam. Voltaram para a Boa Vista.
Família.
Ver também:
Os Carneiros e a Estrela (Parte I).
http://douradocidadeonline.blogspot.com/2010/08/num-passado-distante-em-dourado.html
Os Carneiros e a Estrela (Parte II).
http://douradocidadeonline.blogspot.com/2010/08/dourado-e-imigracao-italiana.html
Os Carneiros e a Estrela (Parte III).
http://douradocidadeonline.blogspot.com/2010/08/ascendencia-espanhola.html
Os Carneiros e a Estrela (Parte IV).
http://douradocidadeonline.blogspot.com/2010/09/dourado.html
Cartas de Germano Agnelli (2ª Guerra Mundial).
http://douradocidadeonline.blogspot.com/search/label/Germano
Igreja Matriz de Dourado (Início do Século XX).
http://douradocidadeonline.blogspot.com/2010/06/igreja-matriz-de-sao-joao-batista.html
História do Trevo de Dourado.
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